
A Génese da
Polifonia
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das Musas
in
Catálogo do 1.º Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo “Terras sem
Sombra” 2003
Programa que celebra la transición del canto gregoriano para el canto a
voces.
The
Creation of Polyphony. A program which celebrates the transition of
Gregorian Chant to the Poliphonic Music.
No ano
de 1163 o Papa Alexandre III dava ordens para a colocação da pedra
angular da Catedral de Notre Dame de Paris sobre os restos da antiga
catedral românica, na sequência das empenhadas diligências do Bispo
daquela cidade, Maurice de Sully, no sentido da criação de um grande
centro relogioso a norte do Rio Loire, cuja influência pudesse concorrer
com a Abadia de São Marcial de Limoges, situada a sul, nos territórios
da Aquitânia. Para além da sua importância na disseminação do
cristianismo dentro e fora das fronteiras francas, a Abadia de Limoges
teve, durante todo o séc. XII, um papel decisivo no desenvolvimento da
cultura e, em particular, da música, já que nela se assistiu ao cultivo
continuado e sistemático dos principais géneros da polifonia inicial.
Com a crescente afirmação da Catedral de Paris na vida europeia, a
partir de finais do séc. XII, este papel passou a ser da
responsabilidade dos inúmeros religiosos e artistas que, durante
décadas, nela viveram e trabalharam. Para a primeira parte do presente
programa, o agrupamento vocal Introitus seleccionou um conjunto de obras
representativas dos principais géneros musicais cultivados em Notre
Dame. Para além do hino de cantochão Ut queant laxis (sobre o qual Guido
d’Arezzo fundou a base do solfejo moderno) e do reponsório breve Ave
Maria, ambos pertencentes ao património ancestral de melodias
gregorianas, teremos oportunidade de escutar três obras polifónicas
(obras a duas ou mais vozes, por oposição ao cantochão, ou gregoriano, a
uma só voz) escritas pelos dois grandes vultos musicais associados è
escola de Notre Dame: Léonin e Pérotin. Numa época em que os conceitos
de autoria e individualidade artística sssumiam, no sistema social e de
mentalidades, um significado radicalmente diferente do que tem hoje em
dia, não é de espantar que tenham restado muito poucos registos de nomes
ligados ao vasto repertório musical que subsiste na catedral, mas estes
são, sem dúvida, os autores do corpus polifónico mais representativo
deste período.
Nestes
três exemplos de organum, um género em que Léonin foi considerado
exímio, segundo fontes da época, são utilçizadas como base de composição
(vox principalis) melodias litúrgicas provindas de repertório de
cantochão, às quais são depois adicionadas vozes suplementares mais
agudas, como se de uma construção em vários pisos se tratasse. No caso
do organum duplum de Léonin, Alleluia Pascha Nostrum, estamos perante o
tipo de organum mais antigo, associado à morfologia do organun
melismático de São Marcial, em que, para cada nota da vox principalis,
são contrapostas várias notas da segunda voz, ou vox organalis, em
longas e ondulantes volutas melódicas. Os organa intitulados Hec Die e
Viderunt, da autoria de Pérotin, ilustram, por sua vez, estillos mais
elaborados, em que são acrescentadas à vox principalis preexistente,
respectivamente, duas e três vozes de composição livre.
As
cláusulas de discante, secções alargadas de organun com grande autonomia
rítmica, constituíram outra linha fundamental de criação musical em
Notre Dame, linha esta que foi privilegiada por Pérotin. Da aplicação de
um texto em latim ou língua vernácula às vozes superiores da cláusula de
discante resultou o motete – um género que viria a marcar os destinos da
tradição musical europeia nos séculos seguintes e cuja génese pode ser
observada no esplêndido exemplo de autor anónimo, Benedicamus Domino/Je
Languis/Pucelete. A prática de acrescentar texto sucessivamente a cada
uma das vozes levou a que os motetes tivessem dois ou mais textos em
línguas diferentes. Os títulos das obras passaram, como no presente
caso, a integrar as palavras iniciais de cada voz, da mais aguda à mais
grave. Um exemplo do conductus para-litúrgico, Cangaudeant Catholici,
atribuído ao cantor Alberto de Paris, completa esta visita ao mundo
musical da catedral parisiense.
A
segunda parte do programa de hoje é prenchida com obras provindas do
Llibre Vermell de Montserrat, um manuscrito elaborado nos finais do séc.
XIV ou princípios do séc. XV, contendo composições religiosas e
seculares destinadas a acompanhar as romarias dos pewregrinos que se
deslocavam ao mosteiro beneditino de Monserrat, situado na Catalunha,
para prestar culto à Virgem Maria. O curioso nome do manuscrito teve
origem na encadernação de veludo vermelho que foi feita para o proteger,
nos finais do século . Trata-se de um conjunto de canções e danças
devocionais, produto da arte de diferentes autores que foram,
provavelmente, os próprios monges do mosteiro, e que reflectem, no seu
estilo e nas suas formas, as principais inovações trazidas ao panorama
musical europeu pelo movimento da Ars Nova, iniciado em França por
Philippe de Vitry (1291-1361)
Rui
Cabral Lopes
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